Existem certas coisas que um bom leitor precisa saber: você não vai passar a eternidade lendo um determinado gênero que gosta ou lhe chama mais a atenção. Ninguém possui tamanha liberdade literária. Sempre existirá um sujeito que lhe indicará um livro, ou haverá aqueles que irão impor-lhe uma leitura diferente da habitual.
No meu caso, como faço parte do vasto universo das letras, é exigido de minha parte que eu possua um conhecimento maior do mundo literário e que não fique somente preso àquilo que mais me interessa. Não estou reclamando, veja bem; dentro da minha realidade isso é bom, só não sei se para você também será. Graças a esse enorme leque de caminhos literários, eu pude conhecer Machado de Assis, José Saramago, Graciliano Ramos... E há dois dias tive a oportunidade de conhecer Clarice Lispector.
No decorrer de 24 horas, eu li A Hora da Estrela, livro de apenas 87 páginas. Estava curioso com relação a esta obra, pois já havia escutado muitos elogios. Cuidado com a curiosidade, muitas vezes ela pode lhe cegar; você não é obrigado a gostar de uma coisa só porque eu gostei. No entanto, também há a possibilade de você colher bons frutos.
O enredo nos mostra a jornada de uma jovem moça nordestina, cujo nome é capaz de impregnar sua mente e não sair mais de lá. Macabéa. É até bonito, se prestarmos bastante atenção... Mas não é só o nome que crava na nossa memória, e você verá o porquê.
Macabéa é do estado de Alagoas e foi tentar a sorte no Rio de Janeiro logo após a morte de sua tia, único parente vivo que lhe restava. Não que ela soubesse o que era sorte, porém isso não vem ao caso: Macabéa não sabia de quase nada mesmo. Ela dividia um quarto com mais quatro mulheres na rua do Acre e logo conseguiu um empreço de datilógrafa. Ela era totalmente incompetente naquilo que fazia e logo não demorou muito para que fosse ameaçada de demissão. Como diria o narrador: "Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. Só vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si em si mesma".
Macabéa nunca perdia a fé, embora não soubesse quem era Deus. Ela não fazia perguntas porque achava que não tinham resposta. Ela não sabia o significado da "realidade". As coisas eram daquele jeito e ponto final. Para ela, o fato de viver já bastava, só que não sabia qual era o objetivo da vida... Ela gostava de olhar os navios no cais do porto aos domingos, uma vez por mês ia ao cinema e ainda se dava ao luxo de tomar coca-cola. Ela não era muito de falar, mas gostava de ruídos. À noite, antes de dormir, ouvia a Rádio Relógio e memorizava os anúncios e os ensinamentos que ela lhe repassava. Nunca recebia presentes, achava bom ficar triste, tinha enjoo de comida, não tinha conhecimento da existência de outras línguas e sempre recortava anúncios de jornais para colá-los em um álbum.
Até que em uma tarde do mês de maio, dia em que não foi trabalhar, Macabéa conhece seu futuro namorado: Olímpico de Jesus. "O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram como dois nordestinos, bichos da mesma espécie que se farejam". Olímpico viera do sertão da Paraíba e trabalhava numa metalúrgica. Era ambicioso, queria ser famoso e guardava segredos obscuros. Era totalmente impaciente com relação ao jeito de Macabéa e acabou terminando com ela para namorar sua colega de trabalho, Glória.
Confesso que realmente não sei bem o que pensar deste livro. (E isso não significa que ele seja ruim). Macabéa mexe com a pessoa, mexe comigo... Por isso que não há como esquecê-la. O seu jeito inocente, obediente e desatualizado chega a ser gritante em certos momentos. Por que ela é assim? Por que não toma um rumo em sua vida? O problema é que nem ela sabe e nem se dá ao trabalho de se perguntar. Até mesmo o narrador fica indignado.
Acho que além de Macabéa, o narrador é o ponto forte do livro. Ele vai construindo os personagens no decorrer da narrativa e não esconde isso do leitor. Ele mostra seu sentimento de compaixão pela ingênua nordestina e chega a dizer que a ama. Afinal, que tipo de pessoa diz a um médico "muito obrigada" quando ele acaba de dizer-lhe que tem tuberculose? Só Macabéa mesmo.
Não sei o que de fato Clarice quis passar com essa obra. Talvez a inocência que poucos ainda possuem nesse mundo cruel, ou a falta de oportunidades que sofrem aquelas pessoas vítimas do êxodo rural. Eu não sei... A Hora da Estrela é um livro que nos leva a refletir sobre os fatos da vida; quantas Macabéas devem existir por aí? É um livro que desperta dentro de nós a vontade de ajudar a pobre protagonista e livrá-la das profundezas da miséria.
Macabéa, a mulher que encanta através da sua simplicidade, e nos espanta com seu puro coração.
A hora da estrela, como a própria Clarice Lispector é, por demais, incompreendida. Muitos amam, muitos odeiam, muitos ignoram. O fato é que, com Macabéa, Clarice quis, acredito eu, construir uma anti-heroína (ou desconstruir a heroína) brasileira, alguém que não tem competência sequer para tocar sua própria vida, que dirá para ser personagem central de uma história.
ResponderExcluir