A Menina que Matava Livros

Muitos dizem que uma lenda se espalha de boca em boca. Outros preferem guardá-la no fundo da memória, como se trancafiá-la nas profundezas do inconsciente fosse capaz de impedi-la de renascer.

No entanto, naquela cidadezinha de interior, a lenda da Menina que Matava Livros prolongou-se por anos; não para assustar crianças ou servir de exemplo para qualquer tipo de punição, mas porque os cidadãos faziam questão de relembrá-la, tinham orgulho de reavivar a chama lendária que inflamava seus corações com respeito e admiração. Uma lenda que merece ser contada.

Para muitos, a história da matadora de livros começara exatamente como qualquer outra de um delinqüente juvenil, embora que, em certos aspectos, não deixe de ser verdade. Mas o que poucos sabiam era que a menina nascera em uma família rica que carregava um nome de prestígio. E, veja só que ironia, seu quarto era cercado por estantes de livros. Aliás, cada cômodo da casa tinha pelo menos duas dúzias de livros.

Foi então que numa bela noite sua vida levou uma rasteira do destino. A pacata cidade foi atingida por um terremoto. O equilíbrio daquelas vidas calmas foi quebrado pelo balanço da terra. As crateras e as fendas tomaram conta das ruas simplórias, enquanto o silêncio era engolido pelos escombros.

Aquela noite foi o despertar de uma assassina. Os pais da garotinha haviam sido esmagados pelas toneladas de livros que possuíam. E a pobre menina, em meio a todo aquele horror, foi a única sobrevivente da avalanche de páginas que caiu sobre sua família.

A menina foi mandada para um orfanato e só poderia sonhar em tocar na fortuna de seus pais quando alcançasse a maior idade. Lá ficou até o término da infância e início da adolescência, e, vale a pena salientar, aqueles anos serviram para o desenvolvimento de seu talento recém-adquirido, e foram o prelúdio dos atos que ela cometeria em tempos futuros.

Para começar com uma pequena demonstração, vamos diretamente ao primeiro assassinato.

Era um livro infantil. Estava posicionado no topo de uma estante e a luz do sol refletia as cores chamativas que ocupavam toda a sua capa. O clima parecia perfeito; ninguém do orfanato prestava atenção e ela também agiria o mais calmamente possível.

Com a ajuda de uma cadeira, ela esticou o braço e alcançou o topo da estante. Quando seus dedos finos tocaram a capa dura, a sensação de triunfo percorreu toda a sua pele. Num gesto rápido, colocou o livro debaixo do braço e trancou-se e um dos quartos do orfanato.

Não tinha mais volta. O ritual do despertar estava completo.

Tudo o que as outras crianças conseguiram ouvir foi uma risada descontrolada de dentro do quarto. Uma folha, quase que totalmente mutilada, passou rastejando por debaixo da porta, numa última tentativa inútil de pedir ajuda. Era a prova do crime.

A diretora do orfanato abriu a porta e, diga-se de passagem, o que ela viu foi uma coisa bem difícil de esquecer.

A menina estava completamente descabelada. Sentada no meio do quarto, suas mãos denunciavam o ato criminoso: seus dedos estavam totalmente cobertos, não de sangue, mas de papel picado.

Era como se a diretora tivesse acabado de entrar em um campo de batalha. Folhas destroçadas caíam ao seu redor, como soldados que pulam de pára-quedas tentando procurar um refúgio, só que, neste caso, já estavam mortos antes de chegar ao chão. No lugar de corpos retalhados, achavam-se palavras dizimadas por unhas enfurecidas. Todo o chão estava coberto por páginas que tentaram lutar por suas vidas até o último momento, mas que foram vencidas por um inimigo imbatível.

A capa do livro foi a mais molestada de todas as coisas. Uma caneta havia sido fincada no centro, como uma faca perfurando um coração. E o mais assustador: havia marcas de mordidas em cada centímetro daquilo que antes era um belo livro.

A menina ainda exibia um sorriso doentio naquele rosto macio. Sua boca salivava, como um animal que ainda não saciara sua fome por completo.

Deve-se concordar que, no mínimo, aquela criança precisava de um tratamento psicológico. E com urgência. E foi essa a providência que a diretora tratou de tomar: mandou a recém-matadora para uma psicóloga.

Inicialmente, parecia o plano perfeito. A menina iria se curar e todos esqueceriam aquele incidente. Mas, acredite, o resultado foi totalmente o oposto.

Quando entrou na sala da psicóloga, a garota se deparou com a maior estante de livros que já vira. E o melhor, os livros eram grossos. Esses vão dar trabalho, ela pensou.

A psicóloga depositou vários brinquedos infantis de frente para a menina. Logo em seguida, ela cometeu o erro de deixá-la sozinha dentro da sala, crente de que quando voltasse a encontraria brincando como uma criança normal.

Só que esta história não é de uma criança normal.

Cá entre nós, do que adianta afastar um macaco de uma banana, se no final das contas você acaba mandando-o para uma floresta de bananeiras?

Assim que a psicóloga voltou para sua sala, teve a visão do inferno. Seus livros grandes e grossos tinham sido reduzidos a livretos. A menina estava em cima de uma pilha enorme de páginas cortadas e terminava de destruir um dos últimos livros da estante, com unhadas e mordidas.

O caso foi de mal a pior. Além de o orfanato ter arcado com as despesas daquela destruição, a fome da menina pela matança literária apenas aumentava. Em questão de poucos dias, mais da metade do acervo infantil havia sido exterminado.

Muitos perguntavam uns aos outros:

- Qual o problema dessa menina?

- Por que ela sente prazer em destruir livros?

Quando era abordada por tais perguntas, a menina só sabia responder uma única coisa:

- Quero mais livros.

Passou a ser notável que o desejo daquela criança não era apenas um mero pedido infantil. Ela passou a ser objeto de estudo. Médicos e psiquiatras chegaram à conclusão de que ela sentia prazer naquilo que fazia, igualado ao conforto que um mendigo sente quando acaba de comer um prato cheio de comida.

Mas qual seria a razão de sentir prazer diante de algo destroçado? Ninguém sabia explicar e, sinceramente, chegou uma época que nem mesmo a menina compreendia mais o motivo. Seu vício havia crescido para tamanha magnitude, que sua única preocupação era alimentar sua sede pela aniquilação de folhas.

Foi preciso prendê-la em um local isolado de tudo e, principalmente, de livros. Ela era sempre alimentada por alguém encarregado de lhe levar comida. Mas com o passar do tempo, os alimentos perderam o gosto e a água não mais lhe abastecia.

Ela não conseguia viver longe dos livros. Precisava pelo menos de um... só mais um... E a oportunidade chegou mais depressa do que o esperado.

Nos poucos minutos que possuía para ir ao banheiro, ela se esgueirou lentamente pelos corredores e conseguiu fugir do orfanato, pulando o muro. Ela conseguia se saciar com jornais que encontrava pelas ruas, mas a sensação não era a mesma. Ela precisava de um bom livro.

Enquanto fazia amizade com meninos de rua e se infiltrava entre eles, adquirindo água e comida, ela arquitetava um plano para um futuro assassinato.

- Por que você não rouba, já que quer tanto? – sugeriu um dos meninos.

- Não, roubar não me dá emoção nenhuma – ela respondia. – O que eu quero é algo melhor.

Foi então que ela descobriu o verdadeiro paraíso na terra. Um dos meninos havia lhe ensinado o caminho e, ao chegar lá, ela ficou deslumbrada diante daquele monumento colossal. As pessoas chamavam o lugar de Biblioteca Municipal.

- Aqui você vai encontrar a quantidade de livros que quiser – explicou o menino.

A menina foi ao delírio. Sentiu sua pele formigar de tanta emoção. Ela tinha muitas opções, então qual escolheria? Pegaria um livro de cada vez, para ter o prazer de sentir cada um sucumbir em suas mãos? Ou poderia vê-los queimar de uma única vez?

A segunda opção era bem mais atrativa. Sim... Seria perfeito. Ela atearia fogo nos livros enquanto toda a cidade dormiria sob a luz de uma fogueira silenciosa. Entraria para a história.

Na noite seguinte, o plano foi executado com sucesso. Deu muito trabalho transportar todos os livros para o lado de fora, ainda mais fazendo isso sozinha. Porém, nada afetaria seu ânimo. Não quando estava prestes a dar um grande passo na sua vida.

Riscou o fósforo e logo em seguida assistiu, com bastante entusiasmo, as chamas devorarem cada página, cada letra e todas as palavras que esbravejavam súplicas, por uma ajuda que jamais viria.

A fumaça da fogueira rasgou a noite. Era possível ver os últimos sussurros das palavras se dissiparem por entre as estrelas. A menina que matava livros observou com um sorriso diabólico, enquanto sua faceta assassina era iluminada pela enorme labareda.

No dia seguinte não se falava em outra coisa na cidade. Afinal, o maior acervo que eles tinham havia sido extinguido da face da terra. A polícia imediatamente começou a busca pelo culpado, mas jamais chegariam à menina. Quem suspeitaria que uma jovem garota fosse a autora de tamanho crime?

Entretanto, alguém suspeitava, sim. Um indivíduo que, motivado por uma curiosidade acadêmica, acompanhara o caso da matadora de livros desde o início. Ele preparou uma armadilha e juntamente com a polícia, conseguiu capturar a menina.

Foi mais fácil do que roubar doce de criança. Bastou colocar um livro no meio da rua e esperar... Pronto. Minutos mais tarde ela apareceu, como quem farejasse o objeto. A menina foi pega segundos antes de alcançar o livro.

Na delegacia, as autoridades decidiam o que fazer com a garota. Chegaram até a sugerir internação num hospício. Mas então o tal indivíduo se pronunciou.

- Eu cuido dela. Farei com que ela aprenda a gostar de livros.

Todas as pessoas, inclusive a menina, se surpreenderam com aquela atitude. Quem aquele homem pensava que era para tentar domar uma Quimera?

- Um louco! – afirmavam alguns.

Agora como tutor da menina, o homem a levou até sua casa. Seu primeiro ato foi prendê-la, algemando-a numa mesa.

- Sei o que isso parece. Não é tortura.

- O que é, então?

- É disciplina.

Dito isso, depositou um livro diante dela.

- Essa é a minha casa e você vai ter que seguir as minhas regras – disse o homem. – Quero que você abra este livro e o leia, sem rasgar uma única página.

- E se eu não quiser obedecer?

- Se não obedecer, a polícia vai te mandar para um hospício. E é bem provável que você morra lá dentro.

- Quem é você?

- Sou um professor de língua portuguesa. Agora leia. Em voz alta.

A menina olhou para o livro e sentiu uma ânsia gigantesca de esmagá-lo e destruí-lo. Infelizmente, ela não conseguia alcançar o objeto e o homem à sua frente parecia estar falando sério.

Ela tentou focar as palavras contidas no livro, mas elas se embaralharam e penetraram no extenso labirinto da incompreensão.

- Não posso ler.

- Por que não? – perguntou o homem.

- Porque não sei ler – admitiu a menina.

O homem não pareceu surpreso.

- É por isso que odeia tanto os livros?

- Odeio você e toda essa gentalha que venera os livros! Livros não prestam para nada! Eles iludem a gente! Foram os livros que mataram meus pais.

- Livros não são assassinos, menina. Você que é! Tem noção do tamanho do estrago que fez?

- São apenas livros.

- Não são, não. Livros carregam uma história. Essa história está lá para ser contada a alguém que quer conhecê-la. Quando você mata um livro, não está apenas acabando com as páginas que há nele, você também mata a história que reside nele, mata o leitor que não teve a oportunidade de lê-lo, mata o autor que teve todo o carinho e trabalho para escrevê-lo. E, de certa forma, você querendo ou não, acaba matando uma população inteira pela perda de um livro inocente. Agora, responda-me: você realmente consegue viver com o peso de todas essas perdas na sua consciência?

A menina que matava livros nunca havia pensando daquela forma. Saindo da boca daquele homem, seus atos pareciam abomináveis e, o pior de tudo, imperdoáveis.

- E então – ele continuou. – gostaria de reverter essa situação?

A menina pensou por alguns minutos.

- Sim.

- Ótimo. Vamos começar.

A partir daquele dia, o homem ensinou a garota a ler e a escrever. E com isso, ela aprendeu que as palavras são mais do que um mero significado de algo; elas têm sentido e poder. Podem lhe ensinar coisas novas e conseguem lhe transportar a lugares nunca antes visitados. E através dessa descoberta, a menina não viu mais motivos para matar livros, pelo contrário; decidiu criá-los.

Quando atingiu a maior idade, ela utilizou boa parte da fortuna de seus pais para a construção de uma gráfica na cidade e para a implantação de novos livros na Biblioteca Municipal. Feito isso, concluiu o segundo grau e partiu para o ensino superior, com o objetivo de se tornar escritora.

Formou-se em Letras e ganhou vários prêmios literários.

Por essa razão que os moradores daquela cidadezinha tinham orgulho em repetir aquela história diversas vezes, pois não é um tipo de fofoca que se passa de boca em boca, e nem um tipo de lenda que merece ser esquecida.

Era a história da menina que amava livros.

Uma lenda que merece ser contada.







Autor: Leonardo da Vinci F. da Cunha