Há dois dias, uma amiga disse-me a seguinte - e sábia - frase: "A poesia é uma forma de escapar dos abismos da vida". E, francamente, ela não poderia estar mais correta. Todos nós somos perseguidos por um abismo, desde o do medo mais profundo ao do ódio mais incandescente. Às vezes somos tentados a pular dentro do seu infinito escuro, de largar tudo para trás e nos render ao mergulho vertiginoso da escuridão.
A poesia é a arte de transformar os horrores da vida em lindos versos poéticos e filosóficos. O sentido das frias palavras do cotidiano são convertidas em significados puramente artísticos, onde o importante não é decodificar o sentido daquilo que é posto, mas sim saborear a sensação das palavras escorrendo por dentro do seu corpo, atingindo sua alma e tocando seu coração.
Dando continuidade à celebração ao Dia da Poesia, hoje temos como convidado o poeta português José Régio. No vídeo logo acima tem-se a declamação da poesia "Cântico Negro", do dito poeta, interpretada genialmente por Maria Bethânia.
É interessante como a poesia ganha um poder maior quando interpretada. Os versos pronunciados são como um campo gravitacional; usam sua força para atrair aqueles que estão por perto. Para quem escuta, a união do escrito com a interpretação oral ganha um valor inestimável, capaz de derreter o iceberg que habita o covil mais secreto do seu âmago.
Pode até parecer brincadeira, mas são esses versos artísticos, essas partículas poéticas, que preenchem grande parte do seu vazio. Esse fenômeno inexplicável resgata sua atenção de volta ao mundo do conhecimento, e mesmo que você não queira entender ou aceitar, elas acabam afastando de você os abismos que se encontram em cada esquina do seu caminho. É, caro(a) companheiro(a), elas salvam sua vida.
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!
Email: meninodasletras@bol.com.br
Twitter: @meninodasletras
Gostei!! Com certeza ao declamarmos de forma correta uma poesia fica belíssimo, pois dá vida as palavras. E Viva a Poesia!!!
ResponderExcluirAêw, very good! It's incredible! A dramaticidade de Bethânia em união com um texto dessa categoria, resultam num momento histórico do show Nossos Momentos! Ah, no show, em seguida a esse texto, ela canta "estranha forma de vida"
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